terça-feira, 27 de outubro de 2015

ADÍLIA LOPES

[A LITERATURA]


A literatura começou para mim aos 10 anos ao ler um texto de Erico Veríssimo que vinha no livro da minha 4.ª classe: Clarissa a observar um carreiro de formigas. Devo a literatura a Erico Veríssimo a à Professora Maria Inácia e às formigas.


Comprimidos, parte integrante da Telhados de Vidro n.º 20, Averno, Lisboa, 2015.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

TIAGO ARAÚJO

LILAC WINE


neste clima de opinião, as tuas palavras deixaram de fazer sentido. existem vozes que reproduzem a voz humana a cantar o vinho de uma árvore persa, pesado como o nome que não chamo alto. a andar de costas contra o futuro, vejo apenas o que já passou: a música num quarto virado a norte, escolhido como espaço para avaliar a economia dos afectos. a teoria dos jogos exige um indivíduo racional e que queira vencer. talvez por isso todos os planos tenham falhado. ficarei mais um pouco à tua espera, até ser demasiado tarde para regressar ao território das pequenas recompensas. esta terra é um lugar povoado de mitos que vamos destruindo um a um. resta agora a ilusão de que, num tempo que nos chegou a ser contemporâneo, teríamos palavras para descrever esta perda de idades passadas. as opiniões dividem-se sobre a continuidade do ser ao longo de uma vida feita de lentas metamorfoses. a passagem dos anos, a construção do corpo e as circunstâncias criaram três ou quatro rapazes com o meu nome. não fui eu que, na adolescência, regressei a pé a casa, pela noite dos subúrbios, depois de ter perdido o último comboio e, sem o saber ainda, a tua atenção. sou hoje o duplo da memória de mim próprio e, em alguns minutos roubados às horas, escrevo a biografia de um desconhecido.


Telhados de Vidro, n.º 20, Averno, Lisboa, 2015.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

RUI PIRES CABRAL

IV. AVANT-DERNIÈRES PENSÉES 3


Basta de elegias às cidades brancas
do fim do Verão. As luzes secaram
dentro das palavras, já nada
as instiga – e que importa, afinal?

Seja como for, tive pouca fé
e más companhias do melhor que há:
amores viajantes, livros emprestados
(tudo é emprestado, se formos a ver),

amigos seguros e outros que o não
foram, nem tinham de ser. Uma coisa
é certa: a hora passou e os versos
murcharam. Deixai-os morrer.


Telhados de Vidro, n.º 20, Averno, Lisboa, 2015.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

MIGUEL MARTINS

[HÁ POETAS ASSIM]


Há poetas assim,
uns gramas de aletria, fina e doce,
traficados como se fossem cocaína pura.
Alimento energético, é certo,
adequado ao passo de galope
com que esperam chegar a algum lado
e, ao mesmo tempo, agradável ao olfacto
de quem nunca suou, nem sequer a foder.

Massa e açúcar, como disse, muito,
mas também o leitinho da infância,
um toque exótico a canela do Ceilão
e o ingrediente secreto,
que pode ser qualquer coisa
e dizem as más línguas que é apenas
uma irreprimível vontade de parecer interessante.

Sim, há poemas que só se assemelham
ao remate perfeito de uma consoada vulgar,
antes de cada um regressar a casa,
maldizer a família e dar início
à gestação de umas saudades nobres,
que aguardarão um ano pela matança.

Melhor dizendo, parecem-se com tudo
menos com poesia, essa grainha
de uva alojada na cárie de um molar,
que há que suportar só com morte interior,
porque essas coisas acontecem sempre
quando todos os dentistas se mascaram de renas
e vão passar uns dias à puta que os pariu.

Telhados de Vidro, n.º 20, Averno, Lisboa, 2015.