domingo, 26 de fevereiro de 2012

FERNANDO DE CASTRO BRANCO

O CÉU DAS GRUAS


Lázaro Inocêncio do Nascimento,
manobrador de gruas na auto-estrada
transmontana, sai do túnel do Marão
para a negra luz do desemprego
e das carências em família. Manobrou

com perícia a cegonha de ferro no céu
da montanha, dialogou com Deus
e com os pássaros sociáveis; olhou
para o fundo de si e concluiu que na terra
ou nas nuvens a vida é sempre abismo

onde a altura é uma questão menor. Hoje
desceu de vez as escalas íngremes,
findou a concessão do troço e do capital,
agora está entregue a si, que o mesmo é dizer
ao destino de ninguém. Lázaro

Nascimento diz que com esta descida
à terra morreu um pouco, e assim à terra
descerá definitivamente em tempo certo
sem estranheza de maior. Não carece
pois o Mestre de o ressuscitar por mais

que alastre o pranto das irmãs
e os direitos da quadra. Na ferrugem
definitiva dos materiais o sinal perene
de que não vale a pena o esforço
de retirar os panos uma e outra vez.


Público, Lisboa, 25 de Fevereiro de 2012.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

BÉNÉDICTE HOUART

[AMOLECERAM-ME O PALATO]


amoleceram-me o palato
as suas palavras, rapariga
ainda ontem meti valium álcool haldol e
mais o raio que o parta, mas nada me
pôs assim em ponto de rebuçado


Vida: variações II, Cotovia, Lisboa, 2011.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

MANUEL ANTÓNIO PINA

O REGRESSO


Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.


Como se desenha uma casa, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A. M. PIRES CABRAL

TUNNEL


E poi, di tanto in tanto,
nell'oscurità,
la ridondanza di un tunnel.

Dio, dov'ero io
quando la luce fu distribuita?


Le illeggibili pagine dell'acqua [de Que comboio é este], org. e trad. de Giorgio de Marchis, Bibliopolis, Nápoles, 2011.