quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

PAULO DA COSTA DOMINGOS

[AQUILO QUE NOS TIRA O SONO]


Aquilo que nos tira o sono
e nos põe a pensar na morte
com uma farpa cravada no ombro
e o jornal fechado no Desporto
são as vizinhas inacessíveis.
Bezerras imaturas, figurantes de cena
nesta quinta pedagógica. Rapa,
tira, põe, nas cidades desertas
de coração: «-se bem!»


O homem quase novo, Frenesi, Lisboa, 2010.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

SOLEDADE SANTOS

E NO ENTANTO O DIA É FUNDO


O horizonte abre-se na cal que maio lava
e no entanto o dia é fundo
de armários, invernos e cheiros
a madeira encerada.
No côncavo de maio existem
antigos sons de respiração,
crianças perdidas no escuro
procurando saídas que não encontram.
Lembro-me –
eu brincava no vão da escada
e vieram dizer (seria maio
ou julho talvez) a mãe morreu.


Sob os teus pés a terra, Artefacto, Lisboa, 2010.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

ANTÓNIO RAMOS ROSA

[PARA UM AMIGO TENHO SEMPRE UM RELÓGIO]


Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.


Poemas portugueses [de Viagem através de uma nebulosa], org. Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto Editora, 2009.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

VASCO GATO

[OS NAVIOS DESMANCHAM-SE SOBRE O CAIS]


Os navios desmancham-se sobre o cais, contornam-se uns aos outros como grandes doenças. Fotografo a cidade a pensar nesses navios, na sua condição de lepra serena. As pontes alçam-se, os rádios difundem canções francesas que não sabemos se existem. Os navios. E nós, como eles, apitando longamente a nossa partida, para que nos acenem mãos francesas ou polacas, para que um lenço conserve subtil a memória desta nossa discreta, fatídica expedição.


Rusga, Trama, Lisboa, 2010.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

RUI CAEIRO

[TODOS OS DIAS LOGO PELA MANHÃ]


Todos os dias logo pela manhã
as palavras

A cansada surpresa de estar vivo
as palavras


Baba de caracol (2.ª edição), Língua Morta, Lisboa, 2010.

domingo, 12 de dezembro de 2010

HENRIQUE FIALHO

POEMAS


Venham ver sob que luzes surgem os poemas, em que leitos navegam as palavras desabridas.
Venham ver a força desta corrente na rebentação da névoa.
Se entre as duas margens conseguirem avistar o que se esconde na neblina, então vejam como tudo baila sem que um único músculo se mova.


Estranhas criaturas, Deriva, Porto, 2010.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

ADÍLIA LOPES

[CHEGO CEDO AO CAFÉ]


Chego cedo ao café
à hora a que estão a entrar
as batatas e as cebolas
os legumes dão-me paz


Apanhar ar, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

domingo, 5 de dezembro de 2010

JOSÉ MIGUEL SILVA

FIESOLE

Para a Anabela Vara Alves

Eu pensava que ser rico se cifrava
na licença de comprar todos os livros
que quisesse, sem credores nem arrepios
no estômago, e ter tempo para ler
duzentas páginas por dia, mais as duas,
três semanas de museus e passeatas
anuais por latitudes europeias.

As viagens propiciam o descaso,
certamente, de razão e sentimento.
Doutro modo não se explica que
assim que vi as casas de colina
que rodeiam Fiesole tenha logo
reduzido de seis maços para cinco
a minha dose de cigarros semanal.


Erros individuais, Relógio d'Água, Lisboa, 2010.