quinta-feira, 29 de julho de 2010

MARGARIDA VALE DE GATO

CAT PEOPLE


Curiosa a tribo que formamos, sós
que somos sempre e à noite pardos,
fuzis os olhos, garras como dardos,
mostrando o nosso assanho mais feroz:

quando me ataca o cio eu toda ardo,
e pelos becos faço eco, a voz
esforço, estico e, como outras de nós,
de susto dobro e fico um leopardo

ou ando nas piscinas a rondar –
e perco o pé com ganas sufocantes
de regressar ao sítio que deixei

julgando ser mais fundo do que antes.
A isto assiste a morte, sem contar
as vidas que levei ou já gastei.


Mulher ao Mar, Mariposa Azual, Lisboa, 2010.

domingo, 25 de julho de 2010

INÊS LOURENÇO

PARA UM LIVRO


O tempo que passei fechado sem
nenhum leitor justificou ser
imolado pelas traças.


Coisas que Nunca, & etc, Lisboa, 2010.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

DAVID TELES PEREIRA

(A LEI)
we were suddenly aware of ourselves
standing there, staring at the future
blindfolded.

Deborah Eisenberg


Em criança fui um homem sozinho numa casa de mulheres.
À excepção do meu pai, à excepção do meu avô e do meu irmão,
fui um homem sozinho numa casa de mulheres
que se vestiam de vermelho e, em segredo,
usavam nomes de princesas antigas
para que o sonho coubesse todo na sua absurda forma de cristal.
Às vezes sozinho, sem nunca as entender,
falava a sua própria língua, como se fosse acreditar sempre
que a minha mãe e as minhas irmãs inventaram, só para elas,
todo o pranto e todo o silêncio que cabem no mundo.

Um dia Raquel ensinou-me a brincar com bonecos vestidos de púrpura
e a imaginar neles Hannah, em oração, quarenta anos mais nova,
na sua cama rodeada de arame farpado, a apaixonar-se pelo senhor F.
e pelos seus olhos cinzento-anjo.
Foram de longe os anos mais felizes da minha vida,
os que antecederam a clausura do Inverno no meu peito,
no dia em que o meu avô morreu.

Só então chorei, quando vi o meu pai aproximar-se do corpo
para o tapar, antes que os corvos lhe ensinassem
o que há que fazer àqueles que morrem.
Mal se suspendeu o céu fez-se negro o seu rosto.
Comprei-o, comprámo-lo caro com o trabalho doloroso das nossas mãos.

Aquietaram-se as árvores, o vento, as mudanças
e os pássaros puderam enfim repousar do seu voo de séculos.
Trinta dias de sol e secura se seguiram e, à primeira gota de chuva,
o meu pai abriu as portas de casa e houve festa.
O meu pai abriu as portas de casa e saíram as mulheres
e entraram os senhores da lei. Disseram
Sempre que invocarmos o teu nome virás a nós e nos abençoarás
Nessa mesma noite ensinaram-me
que Deus desenha o tempo à régua e nunca ao compasso
e que para Ele os olhos não têm horizonte.

Anos mais tarde, quando já nenhum homem se importava
que chovesse ou não, deixei os meus antepassados sozinhos,
uns com os outros, a escrever a e a pensar a lei e o sangue,
como se isso fosse pelo menos metade da vingança que o Senhor
nos merece.
Uma fé inexistente talvez tivesse sido uma fé melhor,
no extenso bosque do meu peito negro,
com o meu avô, com o meu pai e com os seus olhos vazios virados para
Leste.
.
.
Biografia, Língua Morta, Lisboa, 2010.

domingo, 18 de julho de 2010

MIGUEL MARTINS

37


Às vezes, acho-me quase tranquilo. Imerso numa esperança sem fé. Parece-me que me escutais na distância, quando, em silêncio, vos peço perdão. Mas sei que isso não é possível (quando muito – e é altamente improvável – poderíeis, se fosseis todos vivos, estar adivinhando esta minha disposição). Mas basta-me que vos peça perdão. Um pedido que não carece de culpa nem de aquiescência. Uma reconciliação imaginada. Como tudo em mim. Um reencontro que, por agora, não fica adiado. Depois, penso: é como o sono – sem ele, a vida seria insustentável. E vejo-me, uma vez mais, compelido à vida. Se a minha velha mãe assim o desejar, acompanhá-la-ei às compras. Pergunto-me se, nesta altura do ano, já haverá melancias...


O taberneiro, Poesia Incompleta, Lisboa, 2010.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

RUI MIGUEL RIBEIRO

A TARDE


Nesta desaceleração
espero que os dias corram iguais,
uniformes e sem resistência.
Procuro de cada mistério
entender o mais simples.
Fico pelo que é mais rente,
mais sólido, com menos construção.

Já não chega ter os horários,
as entregas e as rotinas,
para aceitar o ritmo de furo lento
da vida. Mais próximo cresce o detalhe.
É mais precisa a dúvida.

Cai a tarde e a pausa continua
e com ela expira o natural desejo
de um prazer, um apetite pela
diagonal de luz que vai dividindo
o espaço, a marca invisível
que fica de mais um dia.


Resumo: A Poesia em 2009 [de XX Dias], Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

domingo, 11 de julho de 2010

RENATA CORREIA BOTELHO

[ENCOSTO A FACE À PAREDE]


Encosto a face à parede
mais triste do quarto, fiel
guardiã do sol posto.

o coração que me deixaste
é uma casa difícil de habitar.


Resumo: A poesia em 2009 [de Um circo no nevoeiro], Assírio & Alvim, Lisboa, 2010.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

RUI NUNES

4.


(branco)
de todas as cores a mais subtil
chama-se cegueira: nome
que avança até se apagar


Telhados de Vidro, n.º 6, Averno, Lisboa, 2006.

sábado, 3 de julho de 2010

MANUEL DE FREITAS

[HÁ UM PAI QUE NÃO ENCONTRA]


Há um pai que não encontra
a bota, o primeiro indício
do desespero (outros, tantos
mais, virão) – enquanto as levadas
correm, correm para a paisagem
subitamente extinta e um pé,
descalço, repousa nos rochedos.

Tinhas três anos, na Calheta.
Começava, só para ti, o fim do mundo.


Levadas (versão revista e aumentada), Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.